A suprema corte dos EUA deixa Trump correr
ou: Republicanos sem Freio descendo a ladeira (constitucional)
Para a surpresa de ninguém, a suprema corte dos EUA acabou de determinar que o Colorado permita que Trump esteja na cédula na eleição desse ano.
A chamada na matéria do G1 tá um pouco equivocada, já que a decisão era restrita ao Estado do Colorado - mas na prática, o que aconteceu é o seguinte: a suprema corte do estado do Colorado fez uma interpretação conforme a constituição determinando que a 14a emenda da constituição Norte-Americana se aplicaria ao caso do Trump, a décima quarta emenda, na sessão 3, diz o seguinte:
Nenhuma pessoa poderá ser senador ou representante no Congresso, ou eleitor do presidente e vice-presidente, ou ocupar qualquer cargo, civil ou militar, nos Estados Unidos ou em qualquer Estado, que, tendo previamente prestado juramento, como membro do Congresso, ou como um oficial dos Estados Unidos, ou como um membro de qualquer legislatura estadual, ou como um oficial executivo ou judicial de qualquer Estado, para apoiar a Constituição dos Estados Unidos, se tiver envolvido-se em uma insurreição ou rebelião contra o mesmo, ou tenha dado ajuda ou conforto aos seus inimigos. Mas o Congresso pode, por uma votação de dois terços de cada Câmara, remover essa impossibilidade.
A história dessa emenda é vinculada a guerra civil, e foi redigida especificamente para evitar que membros da confederação, derrotada na guerra civil, pudessem ser membros do executivo. A interpretação do Colorado, que é uma interpretação originalista da constituição (e, portanto, em linha com a doutrina ideologica de boa parte dos Justices da Suprema Corte americana), é que os eventos de janeiro de 2020 nos Estados Unidos, especificamente a invasão do Capitólio, são característicos de uma insurreição.
Do ponto de vista constitucional, a decisão da Suprema Corte do Colorado oferece um paradoxo interessante. Em circunstâncias normais de temperatura e pressão a gente esperaria que os justices mais progressistas (minoria na corte hoje) fossem antipáticos a decisão: é uma decisão bastante literal na interpretação do texto constitucional, não faz qualquer menção a integridade institucional (um tipo de argumentação bastante presente nas decisões de juízes mais progressistas), e contém alguns anacronismos que geralmente são rejeitados por leituras mais abertas do texto constitucional. Do outro lado, a leitura da Suprema Corte do Colorado é muito alinhada com o tipo de posicionamento que a Sociedade Federalista e outros influentes think tanks conservadores promovem - e ecoa o tipo de literalismo e anacronismo que a atual maioria da Suprema Corte Americana adora.
O restultado final foi unânime: todos os juízes votaram contra a decisão da Suprema Corte do Colorado. O argumento que atravessa todas decisões é de competência: a suprema corte estadual não tem legitimidade para tratar de eleições federais, não no nível da legitimidade do candidato, apenas no nível dos procedimentos pertinentes ao estado (forma de votação, critérios específicos para votar). Mas alguns detalhes das decisões importam:
A decisão assinada por todos os juízes foca na questão da competência mas esconde, entre as páginas 8 e 9, um detalhe interessante: para a suprema corte parece que qualquer decisão sobre a exclusão de um candidato a presidente de qualquer urna em qualquer estado precisa ser confirmado pelo congresso.
O bloco de juízes progressistas defendeu que existem circunstâncias nas quais a corte pode interferir na elegibilidade de um candidato, sem a necessidade de uma consulta ao congresso;
A juiza Barret criticou o concurring dos progressistas em uma nota própria, destacando que a decisão foi unânime na questão da competência e não havia a necessidade de polemizar sobre “a complicada questão da necessidade de confirmação pelo congresso” (o que traz a pergunta: porque diabos então os próprios juízes conservadores afirmaram essa necessidade na decisão?)
Uma corte sem legitimidade?
Em Março de 2016, quando tudo indicava que Obama iria eleger seu sucessor (as pessoas ainda achavam que Trump era uma piada, e o consenso era que Hillary ia vir muito forte para o pleito), o ícone conservador da Suprema Corte, Antony Scalia, faleceu - e Obama teve a oportunidade de nomear aquele que seria o sucessor do maior símbolo conservador da história contemporânea da Suprema Corte.
Obama, sempre cauteloso, nomeou um centrista: Merrick Garland. Os republicanos agradeceram a nomeação da forma esperada: bloqueando o processo de ascensão de Garland para a Suprema Corte, negando até a abertura das entrevistas no congresso. O argumento dos republicanos era absurdo: os americanos vão votar esse ano, devemos esperar para ver se eles querem a continuação do projeto liberal de Obama e tudo que ele representa, e até o fim da eleição, o congresso não vai autorizar o voto. Os democratas, minoria no congresso, não conseguiram fazer nada ( e em alguma medida, confiantes que venceriam a eleição, permitiram a situação).
Bueno, como sabemos, Trump vence a eleição, perdendo no voto popular, e acaba nomeando o sucessor de Antony Scalia: Neil Gorsuch, um conservador (orientado por ninguém menos que John Finnis) com opiniões radicais em matéria de direitos reprodutivos. Sabendo das posições de Gorsuch, boa parte da contestação ao nome dele orbita na discussão do aborto: Gorsuch afirma que não acredita que a Suprema Corte pode reverter Roe v Wade (em 2022 Gorsuch seria um dos votos determinantes na reversão de Roe v. Wade)
Além de Gorsuch, Trump nomeia Kavanaugh (para substituir Kennedy, nomeado por Bush I), e Amy Bernett, nomeada para suceder a lendária juíza progressista Ruth Ginsburg (nomeada no primeiro mandato de Clinton).
A história da nomeação da Amy Bernett é exemplar da diferença de atitudes entre democratas e republicanos quando se trata de realpolitik. Rumores circulavam sobre a saúde da Ginsburg já nos primeiros anos do governo Obama, e existem relatos que Obama teria pedido para ela sair e possibilitar a nomeação de uma nova juíza progressista -mas que o desejo da Ginsburg era que a sucessora dela fosse nomeada pela primeira presidenta Norte-Americana, a sua amiga Hillary Clinton.
Não deu certo.
Antes de falecer, em setembro de 2020, a Ginsburg escreveu uma nota que, para todos os efeitos, era uma despedida e um “último desejo”, declarando que era seu mais “ardente desejo” que sua sucessora fosse nomeada pelo próximo presidente. Os democratas alegaram o precedente colocado pelos próprios republicanos, argumentaram que a eleição estava ainda mais próxima, e que era evidente que deveriam esperar o resultado da eleição.
Os republicanos organizaram, imediatamente, o início do processo de sucessão da Ginsburg, e em um mês Amy Barret era nomeada a nova Justice da suprema corte - todos os senadore democratas votaram contra a nomeação, mas os Republicanos, com maioria no senado, dominaram a votação.
Durante as entrevistas para o processo de sucessão, Amy Barret também defendeu a continuidade de Roe v. Wade. Ela também votou a favor do fim de Roe v. Wade, em 2022.
A foto da atual suprema corte americana ilustra um problema potencial de legitimidade, e um problema claro de falta de freios: dos 9 atuais ministros, 6 foram nomeados por presidentes que perderam no voto popular, e três ascenderam ao cargo mentindo para a comissão parlamentar sobre suas opiniões. A divisão ideológica e partidária da corte não tem precedente, muito menos a politização das decisões, desde a segunda metade do século XX nos Estados Unidos.
Os Republicanos conseguiram ser extremamente estratégicos na formação do atual judiciário norte-americano, falei disso uns posts atrás, quando encarei a história do conservadorismo norte-americano e a estratégia das minas terrestres. O pior é pensar que a perspectiva é de manutenção da hegemonia conservadora por no mínimo uma década: os juízes nomeados por W. Bush e Trump são jovens, e os democratas precisariam de no mínimo mais dois mandatos consecutivos para ter chance de virar o jogo (contando com colaboração do Senado!)
Enquanto isso, em um momento onde os Estados Unidos precisam urgentemente de freios constitucionais para a aceleração de medidas potencialmente autoritárias no executivo (ainda mais em um eventual segundo governo Trump), a Suprema Corte se mostra mais interessada em manter sua linha partidária/ideológica.
As minas terrestres Brasileiras
Seria bom não acreditar nos atuais ímpetos progressistas da nossa corte. É verdade que, por enquanto, o Brasil demonstra uma certa resiliência institucional-constitucional diante de potenciais desmandos, mas a gente sabe que essas coisas são contextuais. A formatação do judiciário brasileiro, nos últimos vinte anos, espelha um processo de cinquenta anos de planejamento e formação ideológica nos EUA - a gente faria bem em seguir atento nessas questões. Já vemos minas terrestres judiciárias em casos de aborto legal, por exemplo, e estou curioso em acompanhar como juízes vão aplicar a decisão do supremo sobre a descriminalização do porte de maconha (que ainda está decidida, mas está por um voto).
Esse não é meu metiê, e não quero meter a mão mais do que preciso nesse vespeiro: no nível do Supremo brasileiro, a possibilidade de inversão ideológica é igual a americana, todas as coisas permanecendo as mesmas: os conservadores precisariam de dois mandatos consecutivos, e da colaboração do congresso. Mas indica um nível enorme de instabilidade que a gente dependa tanto da boa vontade do judiciário para manter algum nível de institucionalidade (e para quem acredita que essas questões são simples, remeto a todos para a decisão da Ministra Rosa Weber sobre o Mandado de Segurança do Lula, em 2017 - e como ela decidiu sobre institucionalidade).
Uma última nota sobre o próximo governo norte-americano:
Vários balões de ensaio estão subindo nas últimas semanas, e todos me parecem apontar para atitudes coordenadas possíveis dos republicanos diante de uma eventual vitória do Biden. A instabilidade na fronteira, no Texas, e a resposta coordenada dos governadores Republicanos, por exemplo, poderia ser facilmente replicada para questionar os resultados da eleição, especialmente em eventuais estados governados por republicanos e que votem no Biden na eleição principal. A decisão da suprema corte, hoje, indica também um certo grau de tercerização para o Congresso: uma eventual disputa sobre votos, legitimidade, insurreição, pode ser transferida para o Senado - causando enorme instabilidade.
Vão ser seis meses extremamente conturbados. Para dizer o mínimo.
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