Uma das minhas histórias favoritas sobre o segundo mandato do Ronald Reagan é que nos últimos anos, quando ficou clara a degeneração mental do Ronnie, a equipe começou , com a apoio da Nancy, a tentar apoiar o presidente contando para ele que ele era um ator, fazendo o papel do presidente dos Estados Unidos. A história provavelmente é apócrifa, embora a idade de Reagan tenha sido um assunto relevante na campanha para a re-eleição, e durante todo o segundo mandato.
Quando Reagan assumiu a presidência, a idade média dos deputados federais era 49 anos, a dos senadores 53. Joe Biden, na época, estava no seu segundo mandato como senador e ainda era um dos mais jovens da casa, aos 38 anos. Biden permaneceria no Senado até 2009 - e presidiria o senado até 2016, na função de vice-presidente da República.
Em quarenta anos o Senado e a Câmara de deputados americanos envelheceram sensivelmente - especialmente o Senado. Hoje, a idade média no senado americano é de 61 anos. Mas a média engana. Vamos ao detalhe aqui:
(os números são dessa matéria muito legal da pew)
Existem mais senadores e deputados nascidos antes do fim da guerra da coréia do que nascidos após a queda do muro de Berlim - e menos de 1/3 dos Senadores nasceu depois de 1975. O total de septuagenários e octagenários no senado norte-americano é maior do que o número de pessoas com menos de 60 anos. Apenas 10 senadores tem menos de 40 anos. A maior parte dos senadores tem uma expectativa de vida de no máximo 15 anos (considerando a idade média nos Estados Unidos). No mesmo período, a média de idade norte-americana foi de 30 para 39 anos de idade, e a taxa de natalidade baixou de 68 para 56/1000 (com uma baixa mais considerável desde 2010).
Repúblicas são regimes elitistas, e elitismo valoriza experiência. Não deveria causar estranhamento, ao menos a princípio, que o resultado de eleições seja algo parecido com a versão moderna de um conselho de anciões. Quase todas democracias contemporâneas tem disposições constitucionais estabelecendo idade mínima para cargos eletivos, e geralmente espera-se que um político chegue ao senado, o governo do estado ou a presidencia da república, depois de acumular alguma carga de trabalho administrativo. Parte disso está dentro de uma presunção maior, dentro da teoria do estado, de que a carreira política deveria ser uma carreira - candidatos deviam apresentar uma história de comprometimento com o setor que pretendiam representar, e atuar nas diferentes escalas relacionadas com o setor - indo do equivalente ao conselho tutelar, até, quem sabe, a presidência da república. Isso leva tempo.
Por outro lado, esse processo deveria ser orgânico, e a própria existência de primárias dentro dos partidos republicanos e democratas sempre teve como principal função - especialmente depois dos anos 50 - servir como uma espécie de temperatura sobre novas lideranças, tendências e ideias dentro dos partidos. Tanto para os Republicanos quanto para os Democratas, as primárias eram ferramentas de validação e teste de nomes já conhecidos dentro dos partidos, e uma espécie de teste de pressão (especialmente para se certificar que problemas aparecessem durante as primárias, e não depois). Questões como idade, experiência, propensão a gafes, escândalos no passado, performance na frente das câmeras, capacidade de angariar simpatia, sempre foram colocadas nas primárias - ou ao menos deveriam ser.
2008 quebra um pouco essa moldura tanto para os Republicanos quanto para os Democratas. No lado Republicano, o senhor McCain foi consagrado o candidato que provavelmente iria para o abate - os Republicanos sabiam perfeitamente bem que depois de oito anos desastrosos de Bush, dificilmente eles conseguiriam vencer a casa branca. Mas a plataforma dele foi mais um sinal de mudanças por vir do que qualquer outra coisa, simbolizada especialmente na sua companheira de chapa: Sarah Palin.
A Sarah estava ali para dar um sinal - não obstante a idade avançada de McCain (71 anos, o que foi assunto o tempo todo), de que havia renovação no partido. Uma renovação intelectual (ok, palavra errada para descrever a Palin, mas vocês entendem o que quero dizer) e geracional - e que essa renovação daria o novo governo Democrata um trabalho danado.
Do outro lado, eu acho que depois de dezesseis anos a gente esquece de como a primária democrata foi complexa em 2008. Obama era um azarão enfrentando um time de candidatos experientes e com sangue nos olhos. Biden, Dodd, Hillary Clinton, Edwards (que hoje caiu em desgraça, mas na época realmente tinha chance de ser um novo Kennedy ou algo do tipo) e Richardson poderiam facilmente ter sido os candidatos democratas - na realidade, no início da campanha provavelmente qualquer um desses candidatos teria mais chance que o Obama, na cabeça do eleitor democrata médio.
Obama, no entanto, se beneficiou da estrutura digital de campanha montanda por Howard Dean nos anos anteriores, e caiu logo nas graças do beautiful people de Holywood que protagonizou a primeira campanha que mobilizou eleitores, de fato, na internet. Várias estratégias de engajamento, informação, distribuição de material são adotadas inicialmente por Obama, que foca na necessidade de quadros novos para representar o partido - e não na discussão sobre experiência e confiabilidade oferecida pelos adversários. Depois de meses de batalha aberta, Obama vence a eleição das primárias contra a Hillary - e ganha a eleição de 2008 de McCain com um mapa eleitoral que hoje seria inimaginável.
A questão da idade de McCain apareceu consistentemente na eleição, especialmente para contrastar com a juventude de Obama - e a tentativa de focar na novidade da Palin acabou servindo apenas como um teste de engajamento para um outro movimento, que acabaria tomando conta do partido Republicano a partir de 2012, depois da derrota de Romney na eleição presidencial.
Em 2016 o quadro muda totalmente. Tanto os democratas quanto os republicanos não oferecem candidatos jovens e dinâmicos - os democratas apostam as fichas em Hillary, e os republicanos, depois de uma primária extremamente caótica, lançam Donald Trump para a presidência. Hillary com 69 anos em diversos momentos questionou a habilidade de Trump, com 70 anos, em ser presidente. A questão da idade não entrou tanto no debate, até pela pequena diferença entre os dois candidatos, e a pauta da renovação política muito menos (tanto Trump quando Hillary escolheram como vice-presidentes políticos mais velhos e consolidados).
O comportamento errático de Trump, na época, levantou um monte de discussões sobre o que era gafe, o que era cretinice e o que era início de um processo de perda cognitiva. De forma geral, o consenso entre os Republicanos era que ele sempre tinha sido assim, um cara que fala o que pensa, de forma meio improvisada, e que esse é o charme do homem, ele não é um político convencional, etc. Depois da vitória, a questão da idade de Trump voltou para a pauta diversas vezes, sempre junto com a discussão do envelhecimento do congresso norte-americano - e, particularmente, da quantidade de políticos democratas que agiam como se a realidade da política americana fosse a dos anos 70, quando eles tinham começado no congresso.
Corta para 2020. Primárias democratas não produzem nenhum candidato novo viável, apenas uma novidade divertida na figura do Buttigieg, que é rapidamente engolida pelo partido e que recebe o memo para “esperar a sua vez”, e o pleito fica entre dois septuagenários que, se eleitos, seriam as pessoas mais velhas a ocupar o cargo: Biden e Sanders. Biden vence a primária, em grande medida por falta de opção melhor e com capacidade de vencer a eleição geral (o consenso era que Sanders jamais venceria a eleição nos estados chave), e se associa com Kamala Harris, na esperança de apelar para eleitores mais jovens - e também para ter um ticket mais diverso.
A questão da idade do Biden foi uma constante em 2020. Todas as discussões focavam na aparência, fala e capacidade cognitiva do candidato - e grande parte da curiosidade ao redor dos debates era sobre qual dos dois velhos em cima do palco iria falhar primeiro, iria cometer o primeiro erro de memória ou coisa parecida.
Muita gente boa achava que Biden deveria concorrer em 2020 prometendo apenas um governo, mas os democratas estavam aterrorizados com o prospecto de uma nova primária, ainda mais uma primária com potencial de durar os quatro anos do governo, e existem poucos pontos focais capazes de galvanizar a base e os financiadores do partido ao mesmo tempo - o imobilismo ao redor de Biden era estratégicamente mais interessante (além disso, muita gente considerava que concorrer prometendo um mandato apenas seria uma confissão que a questão da idade realmente era relevante).
No fim, Biden passou os quatro anos do governo sendo questionado sobre sua capacidade cognitiva, e a alta propensão do Joe em cometer gafes não ajuda em nada. Pelo contrário. Durante os últimos anos pipocaram as declarações desastradas, manifestações públicas intepestivas e confusões de nomes e lugares. Coisas que, vindas de um homem de 80 anos de idade e com o dedo no gatilho nuclear, podem e devem inspirar preocupação.
E então tivemos as últimas semanas.
Nas últimas semanas a gente viu uma série de declarações desastradas do Biden, desde chamar o Macron de Mitterand e confundir o chanceler Kohl com a Merkel, até a reação ao relatório sobre a manipulação de documentos secretos.
Esse último relatório é um caso a parte.
Esse guia do New York Times ajuda a entender a coisa toda, mas vou tentar resumir por aqui.
Tudo começou quando descobriram que o Trump tinha caixas e caixas de documentos secretos na casa dele em Mar-a-Lago, na Flórida, que ele inclusive andava exibindo para convidados. A descoberta rendeu uma série de processos sobre responsabilidade criminal, e dolo na divulgação de informações secretas, vários desses processos ainda estão em andamento - e podem gerar cana para o Trump (falei um pouco sobre isso aqui).
Ao mesmo tempo, Republicanos resolveram fazer uma força tarefa para provar que todo mundo que trabalha no executivo americano tem esses tipo de documento em casa, e descobriu que o Biden tinha algumas coisas na garagem da casa dele, de quando ele ainda era ex-presidente. O Biden imediatamente entregou os documentos, voluntariamente, e um promotor republicano ficou responsável de fazer a investigação.
Na última semana, o promotor finalmente divulgou suas conclusões dizendo que não tinha como abrir processo contra o Biden, porque não havia qualquer evidência de dolo na manipulação do material, ou sequer que o material teria sido retirado das caixas onde ele estava na casa - e que realmente tudo indicava que tinha sido transportado por engano na mudança de Biden da residência oficial, quando terminou o governo Obama.
O promotor também relatou que além de tudo, o estado mental de Biden era tão ruim que atribuir a ele qualquer tipo de dolo seria inadequado. O relatório alegava que Biden não lembrava mais do seu filho morto de câncer, confundia datas, errava a cronologia de eventos básicos - enfim, fazia uma série de afirmações graves sobre a saúde mental e cognitiva do presidente.
Biden, então, resolveu chamar uma coletiva. A coletiva é feita em uma semana horrível para a campanha, com várias pesquisas indicando perda de confiança no presidente, preocupação com idade, baixo engajamento do eleitorado - e isso tudo antes do relatório ser divulgado. A coletiva foi, claramente, uma tentativa de antecipar e mitigar danos.
A coletiva foi um desastre. E é estranha a arrogância dos democratas em dizer que não foi. Entre outras coisas, Biden confunde o presidente do México com o presidente do Egito, gagueja, se confunde na ordem das perguntas, parece caminhar com alguma dificuldade e aparenta cansaço. Tudo isso, é claro, foi usado imediatamente pela oposição.
Enquanto isso, Democratas acusam os Republicanos de serem preconceituosos com pessoas de idade, e alegam que na realidade o problema é a já conhecida dislexia do Biden. De quebra, atacam imediatamente qualquer questionamento ou preocupação sobre o claro desgaste da imagem do Biden em um momento que os números só pioram.
Ontem, o Jon Stewart retomou o programa dele na Comedy Central depois de quase dez anos. Ao retomar o programa, ele imediatamente foi na jugular da questão da idade do Biden (e recebeu o carinho da torcida democrata, que acusou ele de fazer equivalência entre o Biden e o Trump, e que isso é perigoso e que se a gente criticar o Biden o fascismo volta, vocês conhecem bem o roteiro, não vou ficar reproduzindo aqui).
A reação é ridícula em tantos níveis diferentes que eu nem sei bem por onde começar (até porque pretendo começar a terminar esse report). Mas o principal é o seguinte: os democratas estão se auto enganando e sendo arrogantes em uma eleição que seria difícil mesmo sem qualquer gafe ou dificuldade do Biden, mais que isso, e aqui eu queria saber o que os colegas americanófilos acham, é muito significativo que o Jon Stewart tenha ido a público dizer o que disse, por uma questão muito simples:
O Jon Stewart é um Obamista.
O Stewart não fala só por ele, mas como uma espécie de porta-voz de todo um grupo de eleitores e elites democratas. Ao falar abertamente sobre o declínio cognitivo do Biden e da tremenda bobagem que é deixar para discutir isso apenas quando a eleição principal estiver a pleno vapor e não for mais viável trocar de candidato, Stewart torna uma questão que por enquanto era apenas uma conspiração ventilada por fora dos circuitos democratas em uma pauta importante. Se o Stewart disse é porque tem *muito* mais gente dentro do partido pensando no assunto, e esses rumores tem uma tendência geométrica na multiplicação.
Biden deve ser o candidato democrata, não se enganem. Mas essa foi uma semana horrível para a campanha, e a sensação que a gente vai falar desse momento como o momento de ruptura da eleição (algo como Benghazi para a Hillary, ou COVID para o Trump) é bastante forte.
Por sinal, o paralelo do declínio cognitivo do Biden e dos emails da Hillary não é pequeno em termos da reação política dentro do partido democrata, ao menos em público. A reação agora é responder com uma acusação de preconceito, ou falso paralelismo, que ecoa o famoso “but her emails” de 2016. A questão é que existia sim uma preocupação legítima com o que a Hillary fez em 2016, e botar ela debaixo do tapete ou dizer que é irrelevante é só arrogância política - e eleições punem severamente esse tipo de arrogância.
Ainda tem muita agua para rolar, e talvez em outubro a gente leia esse meu post e acuse ele de ser um produto da “histeria com a idade do Biden”. Meu chute, nesse momento, é que provavelmente vamos ver esse momento como algo diferente: como o início do colapso da campanha democrata para a presidência da República em 2024.
Interessante também como o total fracasso de Kamala Harris em se tornar uma vice relevante se tornou também um problema. Uma vice com o perfil dela, se tivesse conseguido ganhar estatura ao longo desses anos, seria a solução ideal (e com verniz de "natural") para a substituição do candidato.
Partido Democrata no mesmo clima daquela foto da convenção do PSDB em 2016.