O eleitor médio, o voto "econômico" e instabilidade
ou: o eleitor médio existe, mas não é médio
Eleições são feitas de mapas.
Tem uma história, que eu não sei se é apócrifa, envolvendo a derrota de McGovern para o Nixon, na eleição de 1972. Sabendo que iria perder, McGovern teria ouvido do seu coordenador que o melhor era “focar em como ele gostaria de ser lembrado” e não em vencer - simplesmente não havia um mapa. McGovern havia passado um ano sendo bombardeado de todos os lados - desde a campanha “qualquer um menos o McGovern” lançada ainda nas primárias democratas, passando por problemas com a nomeação do candidato a vice-presidente, e terminando com uma eleição geral conturbada, na qual McGovern foi retratado como um pacifista covarde, um progressista radical sem conexão com as questões do sul dos EUA, e, paradoxalmente um representante da “velha guarda” democrata, sem conexão com as novas demandas dos ativistas progressistas que ainda tinham restos de flores nos seus cabelos. Nixon mal e porcamente precisou fazer campanha (e inexplicavelmente decidiu invadir o Comitê Central da Campanha Democrata, no Hotel Watergate ,mas essa é outra história) , a rejeição generalizada ao McGovern trabalhou sozinha, e Nixon venceu uma das eleições mais fáceis da história dos Estados Unidos.
Olhando o mapa fica fácil entender porque, meses antes do dia da eleição, já estava claro quem iria vencer. McGovern não tinha um caminho para obter a quantidade de delegados necessários para vencer a eleição, a composição demográfica simplesmente não estava lá.
Tanto republicanos quando democratas aprendem imensamente com essa eleição. Em grande medida, ela redefine as estratégias de focalização geográfica, estabelece a realidade da perda dos votos do Sul para os democratas, e indica a possibilidade do mapa de “50 estados” para Republicanos. Para todos os efeitos, a eleição de 1972 define quem é o candidato “racional” para uma eleição “normal” no contexto norte-americano. No que podemos chamar da era da hegemonia política neo-liberal (entre 1972 e 2012) vamos ter uma sucessão de vencedores que seguem esse padrão normal, com eleições com discursos mais ou menos previsíveis e comportamentos demográficos-eleitorais igualmente previsíveis - a gente sabia, em cada um dos pleitos, onde e como a eleição seria competitiva, e o mantra de James Carville, de 1992, “É a economia, otário”, se tornou uma espécie de profecia auto-realizável para explicar o fracasso ou o sucesso de presidentes.
O voto econômico é sobre a situação econômica?
Desde que Samuelson desenvolveu a teoria pura do consumo é um pouco lugar comum dizer que consumidores “votam com o pé” a partir de um cálculo econômico e utilitário sobre qual movimento oferece maior vantagem comparada. Esse lugar comum provoca um tanto de confusão - especialmente quando lido de forma combinada com o clássico de Downs, “Uma teoria econômica da democracia”. A primeira confusão é a pressuposição que esse cálculo econômico é pecuniária, intencional e declarada - que eleitores estão literalmente planilhando custos econômicos de votar nesse e naquele candidato, e, ao encontrarem resultados pareto positivo, imediatamente tomam a decisão racional de votar no candidato que oferece mais vantagem. Essa pressuposição é besta e faz pessoas dizerem coisas bestas, tanto sobre comportamento eleitoral quanto, e principalmente, sobre decisão “econômica” - o que nos leva a próxima pressuposição.
A outra pressuposição é que o poder explicativo do modelo está reduzido ao fenômeno econômico o que é dizer: se a economia vai bem para o eleitor, o eleitor premia o presidente, e se a economia vai mal para o eleitor, o eleitor pune o presidente. Se um presidente preside uma boa economia, e o eleitor elege um outro candidato isso só pode significar que o outro candidato ou ofereceu uma condição econômica melhor, ou que a premissa do voto econômico está equivocada.
Acontece que não é nada disso. O que tanto Samuelson quanto Downs indicam é que existem padrões de comportamento, de formulação de preferências, que a gente pode obter através da observação ou da declaração de preferências - um bom analista está atento para como essas preferências indicam um custo, uma relação de causas e efeitos que levam uma determinada agente “x” para uma determinada decisão “y”, um axioma do tipo “todas as coisas permanecendo as mesmas, existindo o produto A e B, a FULANA vai escolher A” - e que vai levar o analista a pensar como manter a FULANA comprando A (se ele vende A) ou mudar as coisas (ou a FULANA) para ela comprar B.
Com o tempo, a FULANA vira um grupo de pessoas que se comporta como a FULANA, as FULANAS - e as FULANAS vão ser um nexo de compradoras que são mais ou menos importantes na medida em que elas são mais ou menos densas em uma região (e o quão importante é a região para o produto que queremos vender). E é por isso que homens veganos na California nunca vão ser tão importantes em uma eleição quanto mulheres batistas no Sul dos Estados Unidos.
Eleições são evento econômicos, então, na medida que elas são sobre a identificação de grupos decisivos para a conquista de um determinado mercado, que está sendo disputado por diferentes produtos. Eleitores, aqui, são grupos de consumidores que são disputados por produtos - e a disputa é uma disputa de soma zero: os compradores compram apenas uma vez por evento, e o mercado se abre apenas a cada quatro anos, o que dá tempo para os respectivos produtos pensarem seus respectivos público alvos e como dominar o mercado (dentro das regras existentes no mercado em tela).
Ninguém queria comprar McGovern.
Uma história de duas eleições ou: não é por quê tão brincando do jeito que tu não gosta que o brinquedo quebrou
O que mudou da eleição de 2012 para a de 2016? Ali em cima eu escrevi que entre 1972 e 2012 a gente tem um período hegemônico, com comportamentos e estratégias bastante consolidados para as campanhas eleitorais norte-americanas. O que mudou em 2016? O que tem de diferente na eleição?
O período entre 2001 e 2016 é um período de intenso sangramento da estabilidade neo-liberal. Os principais dogmas do otimismo institucionalista estabelecido por Reagan e Thatcher, e mesmo das variações neo-conservadoras e neo-desenvolvimentistas do modelo neo-lib, foram caindo uma por uma - o principal dogma a cair foi o da flexibilização, ou, eu deveria dizer, das consequências da flexibilização.
A entrada da China, que acelera aritmeticamente a partir de 1972 e geometricamente a partir de 1992, no mercado financeiro internacional muda, como todo mundo tá mais careca que o Gorbacheva de saber, a lógica da produção industrial mundial. A matiz industrial norte-americana e européia muda de endereço para a China e sul da Ásia, e é substituída, em grande parte por empregos no setor de serviço, alta tecnologia e finanças. A aposta neo-liberal é que essa flexibilização não teria problemas, se a capacidade de consumo dos indivíduos permanecesse pareto-positiva - o cálculo era gloriosamente Ricardiano: se a mudança no tipo de emprego não afetar o poder de compra, as pessoas não vão ficar aborrecidas.
O problema, é claro, estava no conceito de “valor”. Pessoas no antigo cinturão da ferrugem, viram, no período de 30 anos, toda a malha comunitária e afetiva que definia o seu espaço demográfico sumir. Esse processo de desaparecimento da malha industrial não acompanhou um aumento de desemprego, ou sequer de diminuição de poder de compra - o americano médio, nessa região, continuou com poder de compra (muitas vezes intermediado por concessão de empréstimos, garantidos pela nova malha financeira), o que ele percebeu, no entanto, foi uma mudança radical na sua comunidade. Industrias, modos de vida, sumiram totalmente, e o exercício das velhas identidades trabalhistas na região virou algo diferente: um movimento político de insurgência anti-establishment, anti-sistema, anti-status quo.
Mas o que seria esse status quo?
2016 é um catalizador de mais de 40 anos de mudanças institucionais, estruturais e identitárias nos Estados Unidos, e essa mudança fica clara quando a gente olha para um mapa:
Esse é um mapa que dá uma vitória de 3 milhões de votos para Hillary Clinton na eleição direta. E uma vitória espetacular de Trump na votação que importa: a dos delegados. Trump vence ao dominar o cinturão da ferrugem (eu marquei num azulzinho bagaceiro ali), e ao virar, definitivamente, o estado da Florida para os Republicanos. Estrategicamente, a gente tá vendo o surgimento de um novo tipo de consumidor “dominante”, o que é dizer, um eleitor capaz de decidir eleições: o eleitor que não gosta do produto “padrão”, que está rejeitando ou associando produto padrão com dor, sofrimento.
Mas… se existe essa mudança, porque Biden vence em 2020? Esses eleitores deixaram de existir? Eu quero propor algo um pouco estranho aqui: e se a eleição de Biden estiver nos confundindo? E se a vitória de Biden não representar um recrudescimento do sentimento anti-sistema, mas uma espécie de um último suspiro de uma velha ordem?
Esse é o mapa de 2020. É uma vitória impressionante do Biden, mas eu quero que a gente preste atenção em algumas coisas: a quantidade de distritos que ficam mais dentos (mais vermelhos ou mais azuis) e, mais importante, a quantidade de distritos que ficam menos azuis. Uma das coisas mais impressionantes na comparação entre 2020 e 2016 é que Trump faz mais votos em 2020 do que em 2016. Ele também faz votos em um nexo mais diverso de votantes. Trump perde a eleição, mas aumenta a sua base de consumidores.
Muita gente quer comprar Trump.
Dor, abandono, sistema e a miragem que não é uma miragem
Biden tem um problema.
É bizarro dizer isso, em qualquer critério normal de análise. A economia americana parece ir bem, o desemprego está baixo, a média salarial parece estar em crescimento relativo, poder de compra médio dos americanos está bom, endividamento é grande, mas isso não deveria ser um problema se as pessoas seguem podendo consumir (oi, outro dogma neoliberal ligou e mandou dizer que é, pois é, parece que não é em por aí). Não é a economia, otário? Como assim, Biden tem um problema?
O problema dele é que as condições estruturais que emolduram a crise anti-sistêmica nos EUA seguem não apenas ativos, mas seguem piorando. A crise identitária nos antigos centros produtivos-industriais americanos virou uma crise de saúde pública, quando o cinismo da indústria psiquiátrica-farmacêutica americana encontrou no antigo trabalhador do setor de manufatura e aço um quadro em branco para pintar uma nova realidade, e aquele americano padrão, antes de capacete de segurança amarelo na cabeça e pá na mão, vira um viciado em, vejam só, painkillers (vou poupar vocês de todas as variações semióticas aqui).
E se esse eleitor, um dia o mais confiável comprador do produto democrata, agora representar um novo normal?
Em azul: mortalidade por câncer (quanto mais azul, maior a mortalidade) em 1996. Em vermelho: lugares com maior intensidade de ganho de votos em republicanos desde 1996, até 2020 (quanto mais vermelho, mais ganho).
Essa matéria da Economist é instigante: a Oxitocin começou a ser usada em 1996 em pacientes com câncer, e se torna endêmica conforme a Purdue Pharma consegue manipular o sistema norte-americano para permitir o uso do opiodato em quase qualquer condição associada com “dor”. A substância criou, desde então, a pior crise permanente na saúde pública norte americana, e o surgimento de um eleitor que compra baseado em um motivador: a sua dor.
Esse votante não é uma pessoa, apenas. Ele é um nexo comunitário, identitário, e mais diverso do que parece - e é um nexo que parece ter um produto em vista, parece estar bastante inclinado a comprar Trump.
A eleição está perdida para Biden? Não, não se trata disso. Mas precisamos tentar entender quais são os caminhos possíveis? Em um contexto onde eleitores progressistas parecem relativamente desmotivados, eleitores ao redor do país votam com sua dor, eleitores anti-sistema re-afirmam sua crença, o que sobra para Biden? Sobra confiar na existência de um establishment que, talvez, já tenha dado o seu último respiro.
2022 é o nosso 2020?
Bolsonaro fez mais votos em 2022 do que 2018. Aumentou a base, diversificou o perfil do eleitor e aumentou a captura da imaginação política de parte da população. É claro, Lula fez mais e conseguiu uma virada em regiões estratégicas, que tinham dado a eleição para Bolsonaro em 2018 (especificamente: São Paulo, Rio de Janeiro e Minas Gerais).
Eu quero deixar dois mapas aqui para a gente pensar um pouco juntos:
2018:
Um país dividido, certo? Bolsonaro nem precisou fazer campanha, boa parte da eleição predicada na rejeição ao Haddad e ao PT, as pessoas nem conheciam bem o Bolsonaro, etc etc etc.
Pois bem, agora vamos olhar para 2022:
Aqui, vermelho é Lula (é claro) e azul é Bolsonaro (é claro). O que mudou? Primeiro, o Lula ganhou onde importa, e aproveitou a rejeição ao bolsonaro em locais chave (cidade de São Paulo) e identificação e aprovação do lula (norte de minas). Mas esse mapa pode ser confundente, porque ele pode nos levar a pensar, dada a vitória do Lula, que a eleição do Lula indica a anomalia do fenômeno Bolsonaro.
Mas, e se for o contrário? Talvez a gente deva olhar para esse mapa e reparar onde o Bolsonaro ganhou votos e intensificou aderência. A eleição de 2024 nos EUA é interessante porque ela vai nos permitir olhar para uma janela de tendência comportamental e de mercado.
Existem diferenças estruturais importantes entre Brasil e EUA, e a questão do sistema eleitoral talvez seja só a primeira questão relevante - as diferenças nas cortes também são extremamente relevantes, Trump jamais teve direitos políticos cassados, enquanto Bolsonaro já está, a princípio, fora do jogo para 2026 - mas nada disso impede de um outro nome surgir, inclusive para indicar que Bolsonaro errou por ser demasiadamente ligado ao sistema.
Talvez a questão mais perturbadora aqui seja: e se o problema for que, no fundo, tanto Bolsonaro quanto Trump não são tão bom vendedores assim? E o que a gente faz quando aparecer um vendedor realmente bom para o produto que esses consumidores querem?
Massa o texto! A parte que mais me chamou atenção é o argumento que sugeriu de que o eleitor "vota com a dor". Li um texto um tempo atrás (Viewing the US presidential electoral map through the lens of public health), que faz uma correlação interessante entre o mapa eleitoral das eleições de 2016 e algumas questões endêmicas de saúde pública aqui nos EUA. A despeito da expansão da cobertura mais barata de planos de saúde aqui nos EUA, o texto apresenta uma correlação que achei interessante: os condados que votaram no Trump apresentam uma taxa maior de obesidade (13%), diabetes (21%) e de prescrição de opioides (24%). O texto não esboçava nenhuma análise, pelo que me lembro, mas achei interessante a correlação, porque geralmente a gente correlaciona o mapa eleitoral com outras variáveis, como escolaridade, faixa etária, gênero, raça, etc. Mas de fato é instigante essa correlação do mapa eleitoral com questões de saúde pública. Acho que isso meio que corrobora com seu ponto dos eleitores meio que votarem baseado na dor.