Eu gosto muito do trabalho do James Hoffmann. O canal dele sobre notas de café e tudo mais é um ponto de discussão constante com a Tati, a Ana Paula e o Bruno, e me lembra sempre da pessoa que mais conhece café que eu conheço: o meu orientador de doutorado.
Um dos assuntos do dia é justamente uma declaração do Hoffmann sobre “parear” café com outras comidas, dizendo que “café não comida muito com comida nenhuma”. As reações me interessaram muito, porque me remeteram aos meus anos de secretário do Centro de Pesquisas em Fenomenologia, e para as discussões que a gente tinha toda quarta-feira.
Quarta-feira era o dia do grupo de discussão. Todo ano a gente pegava alguma temática relacionada com Fenomenologia das Emoções e seguia, Fenomenologia do Medo, Desespero, Alegria, Amor, e por aí vai. Só que tinha um detalhe: todas as reuniões eram regadas por café - e o Steinbock é *muito* sério sobre café.
Muito sério.
Ao ponto da compulsão.
E toda semana a gente tinha alguma variedade de café diferente, que era preparada de acordo com o tipo de grão, intensidade, época do ano, e humor geral do Steinbock. Era um ritual. Logo depois, o Steinbock nos provocava a tentar dar notas pro café, explicar o gosto, a tonalidades, texturas, e por aí vai. Teve um ano que a gente também tinha um colega australiano (insuportável) que trazia diferentes variedades de chá chinês, e daí a gente variava uma semana com chá, outra semana com café. O exercício era sempre o mesmo: tentar aplicar a ideia de redução fenomenológica para a expressar o “limite” do gosto - do ponto de vista didático, era interessante, porque remetia diretamente para a ambição de suspensão de juízos do Husserl: você deve tentar retirar o máximo do objeto para conseguir chegar no objeto, ou algo assim. Sei lá, faz tempo gente.
Eu sempre achei esse exercício interessante, também, porque ele me lembrava do que eu não gosto na fenomenologia: a tentativa de descontextualizar a forma que objetos se dão - ou, de descontar o dar-se do objeto como parte do que ele é, vejam eu sou um perspectivista, eu não acho que coisas fazem sentido fora de contexto. O contexto constitui a realidade do objeto - a gente não sabe as coisas tirando ela da memória, do afeto, do social; e as vezes a tentativa de reduzir a experiência do gosto a um critério onbjetivo, universal, faz uma certa violência com como a gente, bem, como a gente tem experiências.
Esse episódio do Hoffmann me lembrou disso. “Café não combina”, bom, mas a gente associa ele com memórias que vão para além de uma experiência física de “gosto” - tudo que é erótico na nossa vida (e o ato de comer e beber é profundamente erótico) é colocado dentro de uma cadeia de associações e emoções complexas, que nos permitem acessar qualquer experiência como uma experiência de sentido. É claro que a gente pode aprender outras sensações, outros gostos, se abrir para outras formas de ter diversas experiências, e talvez todo mundo deva beber um espresso de 80 Reais filtrado com água mineral feita especialmente para aquele tipo de grão, e que não deve ser combinado com nada sob pena de interferir em todas as dimensões fenomenológicas do gosto - da abertura do café no olfato, até o toque do café na língua, as sensações de textura, densidade, acidez, que você vai “atrapalhar” ao misturar com um bolo de fubá.
(mas as vezes a abertura de mundo, de memória, que o melita barato com um pastel e um pão de queijo podem ser muito mais significativas. Postular a suspensão da memória, do mundo, em favor da abertura de uma certa objetividade de gosto ignora que, bem, essa objetividade, ela mesma, tá sustentada por um complexo de hábitos, normas e, é claro, capital, que tomamos como dado)
Vejam, isso não é para dizer que não existe valor ou importância na tomada da experiência como um ato de arte - mas eu acho que o erro do Hoffmann (e de muitos colegas que trabalham na ponta de lança da estética) é retirar o objeto do seu contexto de significado, tentando buscar ele na sua essência. Eu entendo que para muitos é isso que o artista faz, e tá tudo bem. Mas é um tipo peculiar de alienação esse que tenta sustentar que a forma que a gente tem nossas experiências cotidianas e significativas é a forma errada de perceber o mundo, que o mundo vai aparecer numa suspensão do que a gente faz no cotidiano. Sim, ok, a abertura para a suspensão é importante, mas o nexo perceptivo, reflexivo, também é legal.
As vezes a gente só quer tomar um melita com pão de queijo e lembrar de alguém.
Eu tomo muito café, muito mesmo. E já tomei de todo jeito, dos especiais raríssimos aos daqueles pacotes fora do prazo de validade e que aparecem em listas de marcas que não devem ser consumidas. E o café em viagem, em lugares frios ou quentes, e aquele tomado numa vila perdida no norte das Minas Gerais, casa de pau a pique, garrafa térmica com mais idade do que eu, água certamente fervida e entupido de açúcar e oferecido com uma simpatia tão grande que não tem como não ser bom. E tomo também café morno, quase frio. A única exigência é que ele tenha chegado quente e esfriado na minha frente, distraído que sou.
Contexto. Cem por cento de acordo com o texto.
Eu caí na coisa dos cafés especiais em grande parte por causa do canal do James Hoffman e tô de acordo - às vezes vale a pena a caganeira de Três Corações.