Um dos textos mais legais que eu li ano passado trata um tanto da relação entre imaginação política e delírio - e as narrativas que a gente constrói ao redor da nossa forma de constituir o espaço do político (que, a gente sabe, é o mesmo espaço que o Real).
Alguns anos antes do Abal, o Platão (um pensador, admitimos, certamente menor que nosso amigo de Passo Fundo) já sugeria, na República, a importância da imaginação para a constituição da comunidade política - a passagem mais famosa da concepção Platônica da política, diga-se de passagem, envolve um embate entre realidades, que aponta para o que deve ser a principal contribuição do Platão para a história do pensamento político “ocidental” (que, como é lugar comum dizer, é fundamentalmente uma nota de rodapé ao Platão): aquilo que nos representamos enquanto real é mais real que o real, se é que vocês me entendem. A realidade, antes de ser concreta, é imaginada, postulada na forma de representações do Real que orientam, constituem, afirmam como a gente vê o mundo. Muitas vezes a gente chama esse bicho de “ideologia”
Comunidade, Realidade e Sentimentos Políticos
Essa introdução meio truncada é toda para dizer que toda a polêmica em torno do Hunter Biden, filho do presidente dos Estados Unidos, é uma ótima forma de entender o poder político do imaginário, especialmente em como a imaginação política dividida por uma comunidade é uma ferramenta poderosa de mobilização, organização e identificação.
O Hunter Biden é uma figura interessante. Se fosse um personagem em alguma série como Sucession ou White Lotus, a gente acusaria o roterista de ser preguiçoso. Um filho de político com traumas pessoais, envolvido com um monte de encrenca ao redor de gente meio suspeita, usuário de todas as drogas conhecidas pela humanidade, sempre cercado de mulheres, e com certa predileção de fazer as coisas enquanto tem uma câmera por perto gravando tudo. O cara passa a vida alternando entre tocar o louco mais louco da história dos loucos, ter arrependimentos terríveis, chorar em rede nacional, ir parar em clínica de rehabilitação caríssima, e ver o pai tendo que justificar que “vou fazer o quê, é meu filhão né” - até que o pai eventualmente chega na presidência dos Estados Unidos e o pessoal chafurda nas tuas contas e descobre que tu tem negócios com, bem, uma gente meio bizarra.
Mais uma vez, parece que os roteristas se perderam.
Enfim, o que a gente sabe sobre o filho do presidente é o suficiente para cento e vinte tratados sobre privilégio, os perigos de uma vida de diversão, e, no entanto.
E, no entanto, a discussão dentro da comunidade política conservadora norte-americana sobre o Hunter Biden vê a necessidade de aumentar a narrativa, de tornar ela mais impressionante, mais exótica, mais extravagante - ela vira um âncora, um ponto focal de toda uma imaginação política.
Muita coisa que a gente sabe sobre o Hunter Biden é grave. Existe boa evidência, no mínimo, para apontar tentativa de tráfico de influência do Hunter Biden para o pai, e nunca ficou muito bem explicado até onde foi esse tráfico de influência. Não é teoria da conspiração apontar para isso, e é legítimo fazer perguntas sobre o quanto o atual presidente tentou “ajudar” o filho, e o quanto dessa ajuda envolveu atuar junto a atores políticos questionáveis. O New York Times fez um bom resumo da patota, e deu um título interessante para ela “um exemplo do duelo de realidades nos EUA”.
“Duelo de realidades”. Como assim? Como é que a gente vai aceitar um negócio desses? Bueno, mais uma vez, existe um duelo de realidade porque existem imaginações políticas (no plural) que são predicadas em diferentes formas de constituir o Real. Todos nós organizamos nossas ideias comunitariamente, em grupos de pessoas mais ou menos próximas que dividem uma forma de ver o mundo e conversar sobre o mundo, e que dividem referências para falar sobre esse mundo. Um exemplo é o que eu fiz aí em cima : eu dividi um link do New York Times. Ao fazer isso eu declaro para vocês um pouco das minhas convicções, das minhas formas de entender a realidade, do que eu uso como referência para entender o mundo.
Mas essas convicções não são só minhas, elas são parte de um mundo que eu divido com outras pessoas, e no qual eu quero participar. Eu quero permanecer dentro da minha comunidade, que tem uma linguagem própria, um nexo de representações comuns. Esse processo me dá uma identidade, uma forma de pertencimento e auto-compreensão que me permite inclusive delirar que eu tenho um self.
Uma parte importante da compreensão da política contemporânea contemporânea exige que a gente tente entender o quanto a vente é vulnerável nesse processo de constituição - o quanto a gente é bombardeado de todos os lados por informações que tentam nos levar para esse ou aquele lado, e o quanto a comunidade, enquanto comunidade política, captura o nosso processo de auto-compreensão (que nunca é tão autônomo, racional, iluminado, quanto a gente gostaria que fosse).
Daí Hunter Biden e as diferentes realidades políticas. Hunter Biden é um canvas perfeito no qual a gente pode projetar uma série de ansiedades identitárias, de possibilidades de exercício de autonomia individual, e diversão. Guardadas as proporções, a realidade criada ao redor de Hunter Biden para focalizar o discurso conservador está no mesmo nível da histeria sobre aulas de suruba nas universidades federais (ou da famigerada mamadeira de piroca) - ela é parte de um esforço de focalização do imaginário, do desejo por uma vida mais interessante interpolando com o ressentimento de não conseguir viver uma vida diferente.
Uma dificuldade aqui para os amigos materialistas é que essa não é só uma disputa de classe no sentido mais básico do termo: é claro que existem diferenças de renda envolvidas nessa disupta, mas não é só isso. É também sobre a disputa entre vizinhos, entre o cara que vive na porta ao lado da tua, mas parece tá sempre fazendo festa com os amigos enquanto tu tem que resolver BO da tua família desajustada. É sobre ter acesso a diferentes tipos de valores comunitários em momentos diferentes, e a possibilidade de sair desses valores - constituir o diferente enquanto adversário ou enquanto meta.
Todos esses níveis de sociabilidade e diferença são difíceis de avaliar, e todos estão mergulhados dentro de um suco de emoções morais e políticas. Empatia, aqui, não é necessariamente um bom guia, na realidade, é a empatia pelos meus outros membros da minha comunidade que me faz querer ficar dentro do sistema representacional que a gente divide: eu não quero que pensem menos de mim, eu não quero ser um dos outros caras.
O outro imaginado e a rede de confirmação de intuições
Eu tenho uma bronca com a ideia que notícias falsas criam realidade.
Eu não acho que a conspiração do Hunter Biden, a mamadeira de piroca, a facada fake, ou qualquer outra notícia “falsa” realmente criam a realidade - me parece que as intuições já existem na comunidade, elas já são parte de um set de representações ou pré-representações (alguém poderia dizer “inconsciente” aqui, mas eu não diria), que são organizadas, focalizadas, orientadas por essas notícias falsas, por essas redes informacionais. Elas servem para consolidar intuições comuns, e não para criar realidade. A realidade já existe enquanto uma intuição comum de um grupo social determinado, enquanto ideologia. Essas informações consolidam esse Real, aprofundam a tua, a minha, a nossa relação com esse Real, nos tornam co-conspiradores na mesma forma de ver o mundo.
Esse, é claro, é um problemão.
Essa semana a gente tá vendo esse filme no Brasil com a discussão sobre o conceito de racismo ambiental. Acusações (paradoxalmente acadêmicas) de academicismo, interpolam com ressentimentos mais profundos sobre a participação no consenso teórico-acadêmico sobre um determinado debate, e tem uma apoteose na criação de grupos de replicação de uma realidade. Do outro lado, temos uma lógica parecida: a afirmação de estar do lado certo, virtuoso, do debate, e de refirmar uma outra realidade paralela. Cada campo aqui tem o seu próprio Eu, e o seu próprio Outro. Ambos postulam suas respectivas narrativas como Real. O caráter quase irreconciliável dessas realidades, no entanto, nos aponta para um desafio profundo.
Vejam, peguei um exemplo final aparentemente trivial. Afinal, estamos falando de pessoas que estiveram, muitas vezes, no mesmo lado do embate político nas eleições brasileiras de 2022. No entanto, a velocidade com as quais as redes são capazes de afirmar um grupo in e um grupo out de cada discurso é profundamente complexa.
Isso quer dizer que a verdade não existe, Fabrício? Tu tá querendo dizer que a crença no aquecimento global tem o mesmo valor que a crença no terraplanismo? Não exatamente. Eu tô querendo dizer que do ponto de vista da constituição do político, talvez, a gente focar na realidade da crença seja menos interessante do que tentar entender como essas crenças, esses processos de formação de ideologia e compreensão do mundo, postulam, de fato, uma Realidade.
E, tragicamente, o quanto nós todos estamos na mesma lama.
Post estimulante demais para uma noite de insônia, Fá. :) Gosto muito da discussão sobre imaginação, imaginário e política. Ela é central na minha pesquisa e o uso que você fez dela aqui é surpreendente. Sobre Platão, fui estudar grego por amor a ele (mais ao do Banquete que ao da República, mas não importa). Tudo bem, confesso: esse amor decorreu de um amor, a essa altura antigo, por uma velha senhora minha amiga (e do encorajamento da Jeanne-Marie).