Kenneth Smith, a pena de morte e a ética do testemunho
(um pequeno detour teórico em uma página sobre política)
(esse post contém linguagem gráfica descrevendo processos de execução e tortura de pessoas)
A execução do Kenneth Smith, dia 25 de Janeiro, foi mais um capítulo na longa e contraditória relação dos Estados Unidos com o sistema moderno de Direitos Humanos.
Dentro do que a gente ainda pode chamar, com alguma nostalgia, de democracias consolidadas, os Estados Unidos e o Japão são os únicos países que mantém não apenas a constitucionalidade, mas a prática da pena de morte.
Em 1972 a Suprema Corte norte-americana declarou a inconstitucionalidade da pena de morte depois da publicização de erros e imperícias e, diversas execuções na cadeira elétrica - em uma decisão que estava alinhada com o consenso na discussão de direitos humanos na Europa e na América, que acelerava uma tendência, que começa no pós-guerra, de tornar a pena de morte inconstitucional, 5 de 9 juízes concordaram que as execuções eram punições cruéis e atípicas.
A moratória durou apenas quatro anos, no entanto. Gradualmente, estados tentaram achar buracos na argumentação da suprema corte, alegando que a inconstitucionalidade não estava na pena de morte, mas sim na imposição de punições cruéis e atípicas. Em outras palavras: o problema não era condenar uma pessoa a morte, mas a forma da execução. Execuções feitas sem risco de implicar em tortura, ou mesmo dor física, ao condenado não seriam contempladas pela decisão da Suprema Corte.
Em 1976 a Suprema Corte concorda com o argumento, e autoriza estados a implemenntarem métodos de execução “humanizados” para condenados, e retomar a prática - autorizando, também, que estados constitucionalizem ou inconstitucionalizem a prática no nível local, o que é dizer, dando autonomia para os Estados legislarem sobre pena de morte como acharem pertinente, desde que não violem o proviso federal sobre métodos que impliquem em dor e sofrimento. A suprema corte também determinou um critério de proporcionalidade para a pena de morte: ela só poderia ser aplicada em casos de crime contra a vida. Uma vida por uma vida.
A decisão da Suprema Corte não determinou métodos de execução. E depois de 1976 métodos tão distintos como fuzilamento, eletrocussão, injeção letal e sufocamento por gás foram aplicados em diferentes estados, com diferentes resultados. Escândalos com procedimentos mal realizados de eletrocussão e sufocamento rapidamente tornaram a injeção letal o método favorito dos estados que mantém a prática, que ainda possibilitam aos condenados solicitarem outros métodos (que poderiam ou não serem contemplados pela decisão das cortes locais).
Casos de erros na aplicação de injeção letal, no entanto, também são relatados com alguma frequência - desde executados relatando sensação de queimação no início do processo, até dificuldade dos funcionários encarregados por preparar o condenado para a execução em encontrar veias, passando por relatos de convulsões, vômito, sangramento e sofrimento dos condenados durante a execução.
Todos esses casos, no entanto, não são suficientes para determinar a inconstitucionalidade da prática. Na realidade, o que eles obrigam é a mudança de procedimentos. Cada erro obriga os estados a revisarem e mudarem procedimentos, para que a suprema corte não declare diretamente a inconstitucionalidade da prática novamente - e autorize um novo procedimento como “adequado” - o adequado parece sempre vir com um asterisco do lado dizendo “até prova em contrário”.
A história dos últimos 40 anos de processos de execução de condenados no Estados Unidos é a história da transformação de condenados a morte em corpos que vão testar um procedimento experimental de eutanásia forçada (um eufemismo para assassinato sancionado pelo Estado). O Estado garante a proprocionalidade da punição (uma morte por uma morte) ao mesmo tempo que garante a constitucionaidade da punição (a garantia de ausência de dor física ou terror na execução), ao menos no papel.
No entanto, as sucessivas falhas em processos de execução de condenados criaram um problema para o procedimento se manter constitucional. Entre a impossibilidade de conseguir os coqueteis para provocar a morte sem dor dos condenados, consequência da proibição, na União Européia, da exportação de medicamentos para uso em procedimentos de injeção letal involuntária, passando pela impossibilidade de participação de anestesistas ou autoridades médicas na elaboração dos coquetéis letais e na preparação do condenado para a execução, estados tiveram que se tornar morbidamente criativos para manter a pena de morte.
Nos últimos cinco anos, temos o uso de Fentanyl como droga única para execuções se tornando cada vez mais comum. Não vou explorar aqui a perversidade que a droga que mais mata por abuso nos Estados Unidos, e responsável pela prisão de tanta gente, esteja sendo usada para matar condenados - mas é bem documentado que a droga não é muito efetiva na garantia de uma morte sem dor, e os relatos de execuções mal sucedidas são cada vez mais frequentes.
O caso de Kenneth Smith é emblemático. Ken Smith foi condenado a morte em um processo estranhíssimo, onde o juiz atropela a decisão do juri por prisão perpétua e determina ex-officio a pena de morte (o que depois se tornou inconstitucional no Alabama). Depois de décadas preso, a data da execução é finalmente marcada. Smith é amarrado na mesa de execução, e o grupo responsável não consegue encontrar veias de forma efetiva, a execução inicia, mas não finaliza porque as agulhas não permanecem nos braços do condenado.
Smith, então, volta para o corredor da morte, e por um ano uma discussão surreal procede no nível estadual e federal, sobre a questão do bis-in-idem (ninguém pode ser punido duas vezes pelo mesmo crime), e sobre a questão da punição cruel e atípica. Os advogados de Smith tentam uma apelação para mudança de método de execução, tentando argumentar, logo depois, que o método disponível, ele mesmo é inconstitucional.
A suprema corte do Estado do Alabama discorda. O método não pode ser inconstitucional se ele nunca foi tentado. Ora, até prova em contrário, o método parece ser sem dor e sem sofrimento. A suprema corte dos Estados Unidos, surrealmente, concorda. E, já que se trata de uma nova execução, com um novo método, não há que se falar de bis in idem.
Kenneth Smith foi executado nessa quinta feira. Pelos relatos que temos, não foi uma execução tranquila. O relato fala em 28 minutos entre a entrada do condenado na sala e a declaração de morte, fala em vômito dentro da máscara de gás usada pelo condenado - que talvez tenha morrido sufocado pelo próprio vômito antes de morrer pela inalação do gás.
Certamente devemos relatar a morte de Kenneth Smith. Mas, agora queria entrar numa segunda parte dessa conversa: como devemos relatar essa morte?
A ética do testemunho: ou fazer juz.
A discussão da ética do testemunho é basicamente tão antiga quanto a discussão sobre ética e moralidade. Os textos clássicos de ética sempre operam em uma narrativa moral que intersecciona com eventos, com narrativas sobre acontecimentos contemporâneos que permeiam como pensadores abordam a moral. Um dos textos fundamentais, talvez o texto fundamental da ética na filosofia “ocidental” é a história de uma captura, julgamento, condenação e morte (que a história seja fictícia, pouco importa).
Se desde a apologia de Sócrates nos deparamos com a dificuldade do testemunho e de como dar um testemunho adequado, capaz de comunicar a moralidade de alguma coisa, na nossa era somos necessariamente atravessados pela história da Shoà, e de como dar um testemunho sobre a morte de 6 milhões de judeus em campos de concentração e morte na segunda guerra mundial, pela história das bombas de Hiroshima e Nagazaki, pela história dos abusos coloniais e pós-coloniais no Sul global, e como dar um testemunho sobre tanta tortura, estupro, morte e abuso.
O inominável, o imemorial e, precisamente por isso, o que define a nossa relação com o bem. O bem está, ou deve estar, naquilo que a gente não consegue trazer ao evento, trazer a linguagem, e que parece determinar e obrigar a própria possibilidade da linguagem. A gente não consegue falar muito bem o que é o ético, ou narrar o que é ético e moral, ao mesmo tempo que a gente não consegue não falar sobre o ético e o moral. Um autor da Moldavia dizia que a dádiva moral aparece como algo que não é capaz de aparecer - um paradoxo, e ainda assim uma sensação.
Como a gente narra a morte de alguém que matou alguém? Que matou alguém com requintes de crueldade. Como falar da morte de alguém que se vestia de palhaço para atrair crianças, e depois violentava essas crianças e enterrava elas no pátio de sua casa? Como falar a morte dessa pessoa sem falar das pessoas que ela mesma matou? Como falar da morte de um supremacista branco que depois ter amarrado um homem no parachoque do carro, e ter arrastado o homem pela rua até ele ser decaptado ao bater com o pescoço no cordão da calçada, seguiu matando na prisão? Como falar da morte de alguém que matou uma mulher com golpes repetidos de um atiçador de fogo, em troca de mil dolares?
Todos esses casos que descrevi aí em cima são condenados a morte nos Estados Unidos que sofreram execuções terríveis. John Wayne Gacy provavelmente morreu afogado no próprio sangue, Lawrence Brewer passou horas com um grupo de funcionários da prisão tentando achar veias, e demorou longamente para morrer - aparentando agonizar com o efeito dos narcóticos, o último caso? O último caso é o do Kenneth Smith.
Fazer juz é, necessariamente, um exercício intersubjetivo - atravessado por um dever de narrativa histórica e ética que não é tão fácil quanto escrever uma história apelativa e bonita sobre a humanidade intrínsica a todas as pessoas, ou cair em uma espécie de pornografia de desgraça, apelando para todo tipo de recurso retórico sobre o açogue humano que são prisões e, particularmente, corredores da morte.
A questão passa, também, em como integrar na narrativa a complexidade desses indivíduos e da vida desses indivíduos - e das comunidades que cercam e são afetadas, muitas vezes destruídas, pela ação dessas pessoas. Quem trabalha com política da memória sabe dessas dificuldades muito bem, até porque é atravessado por essas dificuldades o tempo todo.
Mas eu fiquei impactado com a falta de compromisso e reflexão ética na repercussão do caso do Smith. Acusar e denunciar a inumanidade do que o estado do Alabama fez é importante, é necessário - também me parece igualmente necessário questionar a narrativa da monstruosidade moral absoluta, e não sou antipático a tentar achar aquela humanidade intrínseca que o Kant vê em todo o humano mesmo nas pessoas capazes de cometer as piores coisas (lembrando sempre que a opinião de Kant sobre o sistema penal é bastante… well… punitivista).
Será que a narrativa que apaga os atos de Smith da história da execução não é, no entanto, um tanto anti-ética? Não provoca ela também uma desumanização e revitimização cruel e complexa? Isso não é para dizer que Smith mereceu morrer uma morte terrível - ninguém merece morrer uma morte terrível, muito menos na mão do Estado. O problema aqui é o lamaçal ético que esse tipo de situação implica para todos nós - um lamaçal que, no limite, torna a narrativa e a memória, em um truque de mágica, um ato só, um ato que parece sempre um tanto impossível de realizar completamente.
Sou anestesista e posso contribuir com algumas observações de cunho mais prático. Induzir um êxito letal "confortável" utilizando substâncias disponíveis em hospitais é, em tese, algo trivial. Nos EUA, o sistema penal tem dificuldade de acesso a essas substâncias e meus colegas estadunidenses não participam dessas execuções. Isso cria uma situação estranha de "dedesa da vida", por parte de governos e de empresas que bloqueiam a venda desses produtos, mas que penalizam os condenados a sofrerem. Não é tema fácil.
Um adendo: sufocamento por nitrogênio nunca foi tentado para esse tipo de execução, mas qualquer médico de bom senso sabe que não é uma boa ideia, pois o sofrimento é óbvio. Prever que o condenado vai "perder a consciência após alguns segundos inalando nitrogênio", como foi dito antes da execução, é simplesmente desonesto. Creio que matar a pauladas também nunca tenha sido tentado para este fim contemporaneamente, mas é banal inferir que deve gerar sofrimento antes da morte (talvez menos do que o nitrogênio). O argumento de que o método seja aceitável por não ter sido usado antes é bizarro e irracional.
Talvez a gente devesse fazer um pergunta ainda mais elementar: Pq o Estado não deve matar pessoas. Nossos presídios são masmorras e penso que o são porque boa parte das pessoas o querem.